#criticando - Limite
Limite
Direção: Mário Peixoto
Brasil, 1931
★ ★ ★ ★ ★
Limite apresenta três personagens centrais em uma situação limite. A história será narrada de maneira abstrata, poética. Cada quadro traz consigo diferentes interpretações, que objetivam conduzir nossa emoção e se aproximar de uma atmosfera delirante. Baseando-se, portanto, em sua forma. Um questionamento se torna então pertinente: qual a relação entre forma e conteúdo em Limite? Sabemos, o trabalho é classificado como pertencente ao Formalismo – concepção ideológica de análise da narrativa cinematográfica que toma coma base os ideais de análise propostos por um grupo russo de críticos e pesquisadores da arte (AUMONT, 2001, p. 134), e trabalha justamente a questão da forma / conteúdo. Partindo desta forma de pensamento, podemos então ver Limite com mais clareza, além é claro de acrescentar ao filme nossa própria percepção. A direção é de Mário Peixoto, sua primeira exibição aconteceu em 1931, e é considerada uma das obras mais importantes do cinema brasileiro.
A primeira sequência: alguns urubus. O rosto de uma mulher inexpressiva e duas mãos acorrentadas. Olhos imóveis. Um mar brilhante, brilhante. Os olhos outra vez. E um barco. Um barco e duas mulheres e um homem. Os três, de aparência deteriorada, exausta, roupas rasgadas e expressões de derrota. Uma sequência de imagens sem sentido literal, unidas apenas pela montagem. E, evidentemente, pelo seu significado, que, ao longo do filme, compreenderemos. Limite se desenvolve assim: uma sucessão de imagens poéticas, ricas de sentido contribuindo pouco a pouco para a construção de uma narrativa onírica, abstrata, aberta às sensações daquele que assiste e, o mais importante, daquele as sente.
Acompanhamos um trecho da vida de cada personagem. Cada um deles traz sua história de tristeza, sua desilusão, responsáveis pelo estado de perplexidade presente em suas vidas. Uma das mulheres acabara de fugir da prisão. A outra se encontrava só e desesperada. O homem acabara de perder a amante, morta. Pinceladas as trajetórias, o barco exerce sua função metafórica mais clara: os três à deriva, um ao lado do outro. Ninguém pode se ajudar, cada um carrega sua dor, seu peso, que inevitavelmente os levara a um lugar comum: o fundo. O fundo da existência, o fundo da vida, o fundo do mar.
Se a história já está estabelecida, a construção subjetiva das imagens constata a desorientação dos personagens. Plano médio, contra plano, plano geral, plano detalhe. Já nos primeiros 10 minutos a escala de planos é bem estabelecida. A fotografia possui forma. Estando a montagem sempre entre esses planos, separando-os e unindo-os. Entretanto, o que vemos adiante é justamente a desconstrução desses planos comuns. O conteúdo abstrato confere nova interpretação aos enquadramentos planejados – algo que vai além de sua simples função de registro, incorporando uma linguagem poética. Tornando-se ambos complementares.
Se, analisando sob a ótica da escola formalista, “a história das obras não é, portanto, a dos conteúdos, e sim a das formas” (AUMONT, 2001, p. 135) aqui, podemos dizer que ambas se complementam. A forma (planos e montagem poéticos e subjetivos) serve ao conteúdo (a desorientação dos personagens); e o conteúdo serve à forma. Não é possível separar um fator do outro. A escolha estética surge e existe em função do conteúdo, assim como o conteúdo surge e existe em função da estética. A história se torna a soma de ambos. Relação provavelmente não exclusiva à Limite. Talvez pertencente ao próprio cinema.
Exemplos dessa relação não faltam. Como os constantes planos detalhes nos cabelos dos personagens, desde a primeira até a última cena, do cabelo curto e liso da mulher 1 até seu cabelo molhado na sequência final; os cabelos enrolados e bagunçados do homem e da mulher 2. É como se fosse, e efetivamente tornando-se, o cabelo parte indispensável de cada um. O conjunto de planos que enfatizam objetos da sala de costura – fita métrica, botões, tesoura – elementos que não exercem função direta na narrativa, senão o desejo de situar o espectador no espaço físico da personagem de maneira lúdica. Um primeiro plano do homem sentado no barco, no qual se vê somente sua orelha e seu pescoço. Ângulos inesperados, como na conversa entre a mulher e um homem, fotografado de baixo – do chão – evidenciando mais o poste ao fundo do que os próprios personagens. A sequência do cemitério e a cena nonsense dos homens fumando em frente ao túmulo da mulher que compartilharam. A sequência que mostra por minutos imagens de nuvens, do mar, de pescadores. E o barco, sempre presente. O barco e seus tripulantes, à deriva. Exemplos da forma / conteúdo; conteúdo / forma.
O final é igualmente pessimista. O homem é o primeiro em saltar do barco, a mulher 2 tenta em vão impedi-lo. Suas mãos não são capazes de fazê-lo. Mas o mar a chama também. O fundo a chama. Ela, porém, não tem coragem de pular. Joga-se deitada ao chão do barco que começo a afundar, desistindo, mas sem lidar com o fardo da decisão de terminar com sua própria existência, entregando-se ao futuro inevitavelmente desfavorável. Alguns minutos de imagens do mar em fúria, a mulher 1, a única que restara no barco, a única que persistira em sobreviver , agarrada a um pedaço de madeira, mesmo sabendo que será também engolida pelo mar. Levada ao fundo como os outros. Não há maneira de vencer, nem de se libertar. A morte é o destino obrigatório da vida. E novamente sua imagem e as mãos acorrentadas, presas. E finalmente, o mar. Mais calmo. O vencedor. O único que sobrou no final. Intacto e indiferente àqueles que por ali estiverem. Assim como a vida.
A arte e o passatempo. A estética e a técnica. A forma, conferindo a subjetividade ao conteúdo e o conteúdo conferindo a subjetividade à forma. Contrastes. Contrastes que muitas vezes se complementam. Se parte da estética formalista propõe uma relação mais restrita de dois fatores, podemos também – tomando como base os mesmos argumentos – adotar uma visão mais ampla ou mais pessoal. E interpretar. Interpretar e sentir o que o cinema nos propõe, o que Limite – enquanto exemplar singular do cinema – nos propõe. Afinal, é disso que estamos falando. De um pedaço de arte pura e as intenções de seu criador.
Direção: Mário Peixoto
Brasil, 1931
★ ★ ★ ★ ★
Limite apresenta três personagens centrais em uma situação limite. A história será narrada de maneira abstrata, poética. Cada quadro traz consigo diferentes interpretações, que objetivam conduzir nossa emoção e se aproximar de uma atmosfera delirante. Baseando-se, portanto, em sua forma. Um questionamento se torna então pertinente: qual a relação entre forma e conteúdo em Limite? Sabemos, o trabalho é classificado como pertencente ao Formalismo – concepção ideológica de análise da narrativa cinematográfica que toma coma base os ideais de análise propostos por um grupo russo de críticos e pesquisadores da arte (AUMONT, 2001, p. 134), e trabalha justamente a questão da forma / conteúdo. Partindo desta forma de pensamento, podemos então ver Limite com mais clareza, além é claro de acrescentar ao filme nossa própria percepção. A direção é de Mário Peixoto, sua primeira exibição aconteceu em 1931, e é considerada uma das obras mais importantes do cinema brasileiro.
A primeira sequência: alguns urubus. O rosto de uma mulher inexpressiva e duas mãos acorrentadas. Olhos imóveis. Um mar brilhante, brilhante. Os olhos outra vez. E um barco. Um barco e duas mulheres e um homem. Os três, de aparência deteriorada, exausta, roupas rasgadas e expressões de derrota. Uma sequência de imagens sem sentido literal, unidas apenas pela montagem. E, evidentemente, pelo seu significado, que, ao longo do filme, compreenderemos. Limite se desenvolve assim: uma sucessão de imagens poéticas, ricas de sentido contribuindo pouco a pouco para a construção de uma narrativa onírica, abstrata, aberta às sensações daquele que assiste e, o mais importante, daquele as sente.
Acompanhamos um trecho da vida de cada personagem. Cada um deles traz sua história de tristeza, sua desilusão, responsáveis pelo estado de perplexidade presente em suas vidas. Uma das mulheres acabara de fugir da prisão. A outra se encontrava só e desesperada. O homem acabara de perder a amante, morta. Pinceladas as trajetórias, o barco exerce sua função metafórica mais clara: os três à deriva, um ao lado do outro. Ninguém pode se ajudar, cada um carrega sua dor, seu peso, que inevitavelmente os levara a um lugar comum: o fundo. O fundo da existência, o fundo da vida, o fundo do mar.
Se a história já está estabelecida, a construção subjetiva das imagens constata a desorientação dos personagens. Plano médio, contra plano, plano geral, plano detalhe. Já nos primeiros 10 minutos a escala de planos é bem estabelecida. A fotografia possui forma. Estando a montagem sempre entre esses planos, separando-os e unindo-os. Entretanto, o que vemos adiante é justamente a desconstrução desses planos comuns. O conteúdo abstrato confere nova interpretação aos enquadramentos planejados – algo que vai além de sua simples função de registro, incorporando uma linguagem poética. Tornando-se ambos complementares.
Se, analisando sob a ótica da escola formalista, “a história das obras não é, portanto, a dos conteúdos, e sim a das formas” (AUMONT, 2001, p. 135) aqui, podemos dizer que ambas se complementam. A forma (planos e montagem poéticos e subjetivos) serve ao conteúdo (a desorientação dos personagens); e o conteúdo serve à forma. Não é possível separar um fator do outro. A escolha estética surge e existe em função do conteúdo, assim como o conteúdo surge e existe em função da estética. A história se torna a soma de ambos. Relação provavelmente não exclusiva à Limite. Talvez pertencente ao próprio cinema.
Exemplos dessa relação não faltam. Como os constantes planos detalhes nos cabelos dos personagens, desde a primeira até a última cena, do cabelo curto e liso da mulher 1 até seu cabelo molhado na sequência final; os cabelos enrolados e bagunçados do homem e da mulher 2. É como se fosse, e efetivamente tornando-se, o cabelo parte indispensável de cada um. O conjunto de planos que enfatizam objetos da sala de costura – fita métrica, botões, tesoura – elementos que não exercem função direta na narrativa, senão o desejo de situar o espectador no espaço físico da personagem de maneira lúdica. Um primeiro plano do homem sentado no barco, no qual se vê somente sua orelha e seu pescoço. Ângulos inesperados, como na conversa entre a mulher e um homem, fotografado de baixo – do chão – evidenciando mais o poste ao fundo do que os próprios personagens. A sequência do cemitério e a cena nonsense dos homens fumando em frente ao túmulo da mulher que compartilharam. A sequência que mostra por minutos imagens de nuvens, do mar, de pescadores. E o barco, sempre presente. O barco e seus tripulantes, à deriva. Exemplos da forma / conteúdo; conteúdo / forma.
O final é igualmente pessimista. O homem é o primeiro em saltar do barco, a mulher 2 tenta em vão impedi-lo. Suas mãos não são capazes de fazê-lo. Mas o mar a chama também. O fundo a chama. Ela, porém, não tem coragem de pular. Joga-se deitada ao chão do barco que começo a afundar, desistindo, mas sem lidar com o fardo da decisão de terminar com sua própria existência, entregando-se ao futuro inevitavelmente desfavorável. Alguns minutos de imagens do mar em fúria, a mulher 1, a única que restara no barco, a única que persistira em sobreviver , agarrada a um pedaço de madeira, mesmo sabendo que será também engolida pelo mar. Levada ao fundo como os outros. Não há maneira de vencer, nem de se libertar. A morte é o destino obrigatório da vida. E novamente sua imagem e as mãos acorrentadas, presas. E finalmente, o mar. Mais calmo. O vencedor. O único que sobrou no final. Intacto e indiferente àqueles que por ali estiverem. Assim como a vida.
A arte e o passatempo. A estética e a técnica. A forma, conferindo a subjetividade ao conteúdo e o conteúdo conferindo a subjetividade à forma. Contrastes. Contrastes que muitas vezes se complementam. Se parte da estética formalista propõe uma relação mais restrita de dois fatores, podemos também – tomando como base os mesmos argumentos – adotar uma visão mais ampla ou mais pessoal. E interpretar. Interpretar e sentir o que o cinema nos propõe, o que Limite – enquanto exemplar singular do cinema – nos propõe. Afinal, é disso que estamos falando. De um pedaço de arte pura e as intenções de seu criador.
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Danilo. Apaixonado por cinema. Desde Sempre. Estudante de Cinema e Audiovisual. “A luz produzia sons, a melodia gerava luz, as cores tinham movimento porque eram vivas; e os objetos eram a um tempo sonoros, diáfanos e suficientemente móveis para penetrar-se uns aos outros e percorrer num átimo toda a extensão”.
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