#criticando - Em um mundo melhor

O quão longe nós estamos da violência social? E não somente na posição de vítimas, mas principalmente na posição de opressores? O quão responsáveis nós somos por tais atos que assumem proporções globais igualmente intensas às pessoais? 


Hævnen
Direção: Susanne Bier
Dinamarca / Suécia, 2010
★ ★ ★ ★ ★

Dirigido pela dinamarquesa Susanne Bier, conhecida por filmes como o premiado Depois do casamento (2006) e Coisas que perdemos pelo caminho (2007), o longa Em um mundo melhor é mais uma prova da competência do cinema contemporâneo europeu, especificamente, dos dinamarqueses que passam por um bom momento após o amadurecimento da geração criadora do Dogma 95, segundo palavras de Daniel Feix em matéria postada sobre o assunto no site do jornal Zero Hora. Tratar de temas delicados para apresentar uma proposta provocante: o quão longe nós estamos da violência social? E não somente na posição de vítimas, mas principalmente na posição de opressores? O quão responsáveis nós somos por tais atos que - como enfatizado no filme - assumem proporções globais igualmente intensas às pessoais? A reflexão moral é imprescindível, urgente. Uma tonelada de questionamentos são inevitáveis. Levou o Oscar e o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro em 2011.
Anton (Mikael Persbrandt), médico, trabalha em um campo de refugiados em uma região muito pobre da África. Constantemente, recebe mulheres vítimas do Big Man, um maníaco que ataca mulheres grávidas. Uma máxima da violência: o continente mais pobre do mundo, vítima de questões políticas e culturais, onde a desordem social é uma consequência comum. A violência em escala global. As vítimas, humanas.
Christian (William Jøhnk Juels Nielsen), um garoto de 12 anos, faz um discurso no velório de sua mãe, vítima do câncer. Ele acaba de se mudar com seu pai, Claus (Ulrich Thomsen), para a Dinamarca. O menino parece reagir de forma muito madura - até mesmo fria - à morte da mãe. No novo colégio Christian conhece Elias (Markus Rygaard), filho de Anton. Vítima de bullying por parte dos colegas, Elias não tem amigos. Os professores ignoram o problema, e chegam a culpar os pais, Anton e Marianne (Trine Dyrholm) que estão a ponto de se divorciarem, pelos problemas do garoto. Passamos a um país desenvolvido. Os problemas sociais são aparentemente menores - e de fato são. A violência, porém, como veremos ao longo da história, está igualmente presente.
A amizade entre os dois cresce quando, ao presenciar uma das várias situações de bullying, Christian agride violentamente um dos opressores de Elias. O caso vai parar polícia. Ambos negam portarem uma faca no momento do ataque - o que de fato aconteceu. A partir de então, nos é apresentada a primeira questão do filme: justiça. Sentimos uma profunda compaixão por Elias e pela atitude de seu herói: um garoto valente, destemido. Um justiceiro, sem dúvidas.
Eles se tornam amigos. A relação de Marianne e Anton mostra-se complicada e dolorosa. Há traumas do passado. Mas ainda existe um carinho, que inevitavelmente explodirá em algum momento. O bullying já não acontece. Reagindo com violência, os jovens sentem que  cumpriram seu objetivo: mostrarem-se como os mais fortes, os merecedores de respeito. Um pensamento que, estimulado por Christian, começará a atingir proporções maiores e até mesmo psicóticas. "Então, Christian acha que encontrou uma verdade fundamental: não se deve curvar à violência nunca, à força se responde com força. E essas duas hipóteses - reagir com força ou rejeitar a violência - vão ser testadas durante o filme todo em situações que vão seguindo uma escalada de importância e de perigo", comenta Isabela Boscov em sua crítica sobre o longa no Veja Cinema.
O estopim, uma situação intencionalmente banal: Anton envolve-se em uma briga com o pai de um garotinho, um mecânico metido a valentão, ao passear com seus filhos em um parque de praça. O mecânico agride Anton, e segundo Christian que também estava presente, o humilha. Apresenta-se o segundo tópico do filme: a pacificidade. Anton não reage, de nenhuma maneira, às agressões. Ele se diz superior. O agressor, em sua plena ignorância, é o humilhado. A reflexão é imediata: o quão pacíficos nós somos? Somos contrários a uma violência idealizada, mas constantes praticantes de uma violência fundamental, uma extravasão de ódio, disfarçada de justiça, cujas consequências prosperam em escalas globais? É isso mesmo?
Gradualmente, o tema cresce. Christian deseja a todo custo justiça - vingança (?). Elias hesita. Chrisitan porém, mostra-se absurdamente rancoroso, frio, violento, insensível. Características típicas de crianças que sofreram algum tipo de abuso ou trauma. O sentimento de amizade até agora existente é totalmente dominado pelo ressentimento, torna-se algo pequeno, fútil, sujo. Chris parece querer unicamente um cúmplice, alguém que queira - assim como ele - transbordar demonstrações de superioridade por meio de atitudes violentas. Elias - pela internet - pede ajuda ao pai, que acabara de voltar ao trabalho no Sutão. O momento errado, a hora errada. Anton tivera um dia péssimo. Big Man aparecera na aldeia exigindo ao médico local o tratamento de sua perna infeccionada. Novamente, a pacificidade. Como médico, Anton não deve recusar tratamento a quem seja. Não há dúvidas em sua decisão. A desaprovação dos habitantes é obvia, visto que Big Man é o assassino e molestador confesso de centenas de mulheres e seus bebês, imune à penalidades graças a desumana lei de sobrevivência vigente, segundo a qual, justamente, o mais forte - o da gangue mais poderosa - é soberano o suficiente para cometer as monstruosidades que desejar. Clichê? Sim. Utópico? Talvez. Maravilhoso. Uma das sequências mais significativas do longa.
Daí em diante, o que aconteceria com Elias é previsível. O garoto cede às pressões do amigo e tomam uma catastrófica decisão: explodir com rojões encontrados na casa de Chris o carro do valentão que desafiara Anton. Os acontecimentos que antecedem a manhã do atentado são de crescente angústia, de previsível tragédia. Constatamos o quão abalado Christian ficara com a morte da mãe, que desejava morrer para deixar de sofrer, e que o pai atendera ao pedido da esposa - tal questão não chega a ser o foco da narrativa em momento algum, mas encaixa-se bem na temática. Christian está totalmente desequilibrado emocionalmente. E Elias, iludido, confuso. O longa torna-se, principalmente nesta etapa, "tremendamente envolvente", usando mais uma vez palavras de Isabela Boscov.
A tragédia previsível acontece. Um clímax melodramático, envolvente. O ponto alto da história. No momento da explosão, Elias avista uma mulher e uma criança se aproximando do carro. Ele corre para impedir, e é atingido pela explosão. Chris se desespera. Marianne - também médica - se desespera ao ver o filho entrar no hospital, ferido, inconsciente. A sequência mais impressionante do filme. Chris, igualmente chocado, confessa tudo à polícia. Têm-se início seu processo de remição. De culpa. De sensibilidade. Marianne despeja seu desespero em Chris, dizendo ao menino que Elias está morto.
Surge então uma nova questão. Nós, espectadores, ao decorrer do filme, somos também tomados pelo ódio. Propositalmente, somos levados de um prazeroso sentimento de justiça à uma raiva involuntária ou não, depositada no personagem do jovem Christian. O que quero dizer é que, a mesma história que passa uma mensagem, traz uma prova dessa mensagem. Traz o conteúdo e a pergunta. Quantos dos espectadores foram capazes de sentir ódio por Chris, dado seu comportamento, frio, violento, por sua tentativa de ser superior? E quantos de nós também não odiamos o maldito Big Man? A contradição é induzida e imposta pela diretora. Intencionalmente imposta: a partir deste ponto começamos a sentir compaixão pelo garoto, já que, apresentados seus medos e fraquezas somos capazes de entendê-lo. A contradição é: somos capazes de sentir compaixão também por Big Man? Sem sermos induzidos pela diretora? Sem sermos pressionados pela narrativa? Assim como Anton fora capaz alguns momentos antes?
As consequências dos atos dos dois vilões acontece obviamente em proporções absurdamente antagônicas, mas que derivam de dois sentimentos comuns: ódio e cultura. Comparar os dois continentes Europa e África é tarefa um tanto quanto prepotente. Segundo palavras impensadas - segundo minha análise - de Marcelo Hessel em seu comentário no site Omelete, "Susanne Bier nunca foi uma diretora de meias palavras, perdoa-se o seu exagero quase irresponsável de comparar a realidade cruel de um fim de mundo africano com as questões rotineiras dos belos loiros suecos e dinamarqueses. O que torna Em um Mundo Melhor insuportável não são as cenas na África, mas a tentativa constante de enxergar em tudo aquilo que se move na Europa sintomas das doenças gerais da humanidade". Discordo totalmente. Toda a humanidade é vítima dessa - usando as palavras de Marcelo - doença geral da humanidade, que eu diria, nada mais é do que o próprio ser humano e sua relação com o que lhe é natural ou cultural. Colocar a violência como algo natural e a bondade como um valor cultural nos abre os olhos para uma verdade - proposta também pelo filme - muito maior: ninguém quer ser pacífico. Ninguém enxerga que é esta a única maneira de acabar com a violência mundial. De alcançar a paz mundial - touché!. Quem não entendeu isso, não poderia tomar a mesma atitude de Anton. Não poderia dar a outra face. Como ele, talvez por conhecer uma máxima consequência da violência - a pobreza do continente africano - o fizera.
O desfecho é esperançoso. Após uma tentativa de suicídio, impedida por Anton em uma cena incrivelmente bela, Chris compreende seu pai, e reata sua amizade com Elias. Marianne também compreende Chris. Anton volta à África.
"Ela (a diretora) tem uma queda pro sentimentalismo [...] ela consegue tocar em questões realmente complexas e tratar delas sem simplificá-las. O que significa, claro, que não vai haver uma resposta propriamente dita pra aquelas duas hipóteses - violência ou não violência", segundo Isabela. E realmente não há. Propor uma resposta seria tarefa fútil demais. O que posso dizer, relaciona-se com os questionamentos levantados pelo filme. Aqueles que citei ao longo desta análise. Justiça, pacificidade, violência, ódio, compreensão. O quanto de cada um deles nós, meros mortais, vivenciamos e demonstramos? O quanto somos imunes ou vítimas delas? E - talvez - a maior das questões: o quão globais as consequências dessas atitudes podem e efetivamente se tornam? Pense bem.
A fotografia e a montagem realista - características do cinema europeu contemporâneo - são impecáveis. Destaque para as cenas na Àfrica. O grande destaque fica por conta do elenco. Todos, dos adultos às crianças estão excelentes. Bier não mascara suas tendências melodramáticas - em alguns momentos inclusive na trilha sonora, também impecável - mas as contextualiza e extrai do gênero o melhor para seu trabalho. O resultado: um filme emocionante que te pretende do principio ao fim - as vezes frases clichês são bem vindas, ha!. O melhor do cinema europeu. O melhor do cinema atual.








Postado por Danilo Craveiro
Discussão 1 Comment

1 Comentário em: #criticando - Em um mundo melhor

  1. A melhor crítica que eu ja vi sobre o filme "Em um mundo melhor". Muito bom!

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