#criticando - A paixão de Joana d'Arc

A paixão de Joana d'Arc
Direção: Carl Theodor Dreyer
França, 1928
★ ★ ★  

Um rosto. Um fato histórico. Uma câmera. Cinema, muito cinema. A paixão de Joana d’Arc é um filme de paralelos. Paralelos e um milhão de interpretações e principalmente, emoções. De um lado traz a simplicidade de seu cenário e a complexidade de sua heroína. A tradição do formalismo e o apelo do realismo. A repressão da sociedade e a paixão de uma só pessoa, uma só alma – o contra plongée dos juízes católicos ingleses e o plongée de Joana. Elementos que não se embatem, mas se complementam e dramatizam da maneira mais avassaladora. Avassalador para o cinema. Para a arte. Para a humanidade. O filme é dirigido pelo dinamarquês Carl Theodor Dreyer em 1929 na França. Sua versão original foi recuperada somente nos anos 80, dada a censura na época de sua realização.
O longa começa com um relato dos realizadores: tudo o que será visto foi baseado nos autos originais do julgamento de Joana d’Arc – mártir do povo francês, líder na Guerra dos Cem Anos no século XV, queimada na fogueira pelos autos-de-fé e canonizada em 1920 pela igreja católica. Veremos, portanto, uma representação de um fato verídico. Na cena seguinte, uma jovem de cabelos curtos entra, assustada, em um salão. Homens carrancudos armados com lanças, homens velhos com suas vestimentas clericais. Iniciam-se as perguntas, ou melhor, as acusações. A jovem, Joana (Renée Jeanne Falconetti) chora no centro do salão, e assim permanecerá durante todo o filme. No centro da história. Exposta a todos aqueles que ali estão, simplesmente para fazê-la confirmar uma versão dos fatos criada por eles.
Não há um grande cenário. Não há externas – com exceção da sequência final. Não há muitos objetos de cena. Temos à frente das paredes cinza, personagens. Um conjunto de velhos repugnantes exprimidos em primeiros planos, cercando a heroína. A mártir, Joana, que permanece em um maravilhoso excesso de closes, no centro da flagelação. Os planos próximos dilaceram personagem e atriz. Podemos começar a perceber e interpretar esses e outros elementos da narrativa que serão responsáveis por sua dramaticidade angustiante e por sua linguagem única.
O filme se aproxima do formalismo quando constrói uma narrativa poética baseada na imagem. Mas, neste caso, a poesia da imagem não está na ambiguidade ou subjetividade dos elementos pela câmera capturados, mas sim na expressão dos rostos expostos em super closes. Na captura de seu sofrimento, na captura da subjetividade própria dessas faces. A câmera não é, portanto, descobridora de um mundo fantástico, utópico, pertencente aos sonhos; a câmera é reveladora de um mundo igualmente subjetivo, mas que vive no corpo do ator.
Vemos também presente características do realismo. A introdução do filme é prova disso. Deixar claro que o roteiro se baseia nos registros originais então encontrados, do julgamento de Joana. Outro fator importante é o sentimento de identificação e comoção que nutrimos para com a protagonista. Sofredora, acompanhamos sua angustia, seu medo, sua impotência. Sentimos extrema compaixão e raiva pela injustiça cometida. Vemos Joana responder as perguntas sem saída dos inquisidores. A vemos tendo seus cabelos raspados e sendo humilhada na sala de torturas; a vemos assinar um documento falso até abrir mão de sua crença e sua fé para ser salva da fogueira e condenada à prisão perpétua; a vemos voltar atrás em sua decisão e preferir o inferno momentâneo da fogueira ao inferno constante que seria sua vida se vivesse na negação de sua religiosidade. Acompanhamos, assim, sua trajetória. Os momentos finais que a tornariam uma mártir.
Além disso, A paixão de Joana d’Arc traz uma relação individuo/sociedade interessante. Cléber Eduardo, crítico de cinema, em seu artigo Quantos e quais Dreyer na revista Contra Tempo, destaca: "É curioso ouvir tanto o diretor como muitos de seus admiradores valorizarem exclusivamente a capacidade dreyeriana de tornar palpáveis os tormentos humanos quando essa aparente abstração é menos provocada por algum mal da alma inerente ao humano (como em Bergman) e mais por forças concretas da estrutura social. Dreyer tem uma notável sensibilidade para enxergar em seus mundos miúdos, fechados em casa ou em pequenas comunidades (no campo ou na cidade, na gente simples ou na elite), traços de uma ordem produtora desses micro-universos”. Se no Neorrealismo italiano, a temática era caracterizada pela crítica de caráter político, de denúncia à uma sociedade injusta, que produz e excluí os pobres, em um contexto histórico específico, em A paixão de Joana d’Arc, Dreyer concentra sua crítica ou denúncia à sociedade e seu peso atemporal, herdeira do passado e opressora do presente e do futuro. Sociedade que oprime de maneira muito maior e marginaliza aqueles que percebem seu fardo, sua impotência, em um tom existencialista, filosófico. Um retrato da opressão de almas que não veem saída, do macro ao micro. Do paralelo, do contraste de toda a história da humanidade – macro – e sua influência direta na individualidade de uma única pessoa – micro.
A paixão se torna então um avanço, um marco na linguagem cinematográfica e um tesouro para a arte e para a humanidade. Além de reunir as características recém-estabelecidas para o cinema de maneira evidente e extrema (closes, montagem paralela, a mocinha do filme, o gênero cinematográfico, neste caso o drama histórico, elementos estabelecidos por D W Griffith em 1915 com o Nascimento de uma nação) reúne características realistas que formariam mais tarde o neorrealismo na Itália, no final dos anos 30 e 40.
Para a humanidade tornar-se algo intocável por trazer uma representação de parte importante de sua história, nunca vista de modo tão chocante. Uma representação e uma reflexão intensa e existencial, dramática, filosófica, triste, que evidencia a opressão tanto no tempo de seus personagens quanto na era de sua realização. Uma obra imensa. Que invade, que mostra a força do cinema em sua plenitude. Que é atual e sempre será. Que traz a poesia imagética estampada no rosto de Joana dominada por Fontanetti. E o realismo de uma personagem, da alma, da sociedade, do homem... Enfim, arte caótica e sublime.

Postado por Danilo Craveiro
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